A INOVAÇÃO TORNA A JUSTIÇA MAIS EFICIENTE, HUMANA E COMPREENSIVA
A Justiça Federal do RN desenvolve atualmente um trabalho voltado para a população em situação de rua. Batizado de Pop Rua Jud, esse trabalho atua de maneira diferente: ao invés de esperar que essas pessoas procurem os fóruns, é o Judiciário que vai ao encontro dessa população. E — contando com o apoio de 37 […]
A Justiça Federal do RN desenvolve atualmente um trabalho voltado para a população em situação de rua. Batizado de Pop Rua Jud, esse trabalho atua de maneira diferente: ao invés de esperar que essas pessoas procurem os fóruns, é o Judiciário que vai ao encontro dessa população. E — contando com o apoio de 37 parceiros — oferece a esses cidadão desde um simples corte de cabelo passando pela regularização de documentos e inclusive ajuda na requisição de benefícios.
O Pop Rua Jud só é possível porque está sendo desenvolvido por meio da criação do Núcleo 4.0, que é uma vara digital focada em atender essa população. O coordenador deste núcleo é o juiz federal Marco Bruno de Miranda Clementino. Na entrevista a seguir, ele explica que essa iniciativa vai muito além do que aparenta, porque tem no seu cerne, a aplicação da inovação — do pensamento inovador — para fazer com que a Justiça seja mais eficiente e humana.
Marco Bruno de Miranda demonstra como o uso desse pensamento pode promover soluções e agregar valor ao Judiciário. Fala também que inovação é muito mais que usar ferramentas tecnológicas. O juiz demonstra ainda o que a Justiça e a sociedade podem colher de benefícios deste novo momento que o Judiciário no Brasil vive. E como esses ganhos estão chegando às cidades.

Como surgiu o Pop Rua Jud? Como foi que surgiu essa ideia?
Em 2021, o Conselho Nacional de Justiça editou uma resolução criando a Política Nacional Judicial de Atenção às Pessoas em Situação de Rua. Na verdade, essa política surgiu ante uma preocupação nossa na Justiça Federal, porque a gente percebia durante a pandemia, em particular no início da pandemia, que o público ao qual mais se destinava o auxílio emergencial era justamente aquele que estava com dificuldade de recebê-lo, que eram as pessoas em situação de rua, que não tinham os documentos necessários, tinham dificuldade de buscar, etc. Então, a pandemia meio que escancarou algo que, claro, nós já tínhamos alguma percepção, mas se percebeu a gravidade disso em função inclusive da massificação daquele benefício. Ou seja, que uma pessoa em situação de rua tinha dificuldade enorme de acesso à justiça, mas, até pela quantidade, a gente percebeu que o auxílio emergencial não estava chegando àquelas pessoas. Então, a gente começou a debater no âmbito da rede de Centro de Inteligência da Justiça Federal o que poderia ser uma política judicial voltada às pessoas em situação de rua, focada no auxílio emergencial. Então, o tema terminou ganhando envergadura. Só um detalhe aqui, a gente tinha a percepção, sim, de que a justiça era menos acessível às pessoas em situação de rua do que aos demais, mas a gente achava que isso era meio que suprido pela Defensoria Pública e, naquele momento, se percebeu que nem a Defensoria Pública estava conseguindo suprir esse distanciamento. Então, iniciou-se uma discussão, eu não participei disso. Eu participei da discussão inicial no âmbito da rede de Centro de Inteligência, porque eu sou do Centro Nacional de Inteligência da Justiça Federal. Mas, depois, no Conselho Nacional de Justiça, foi criado um comitê e foi delineada uma política nacional de atenção às pessoas em situação de rua.
Como foi o início deste trabalho, a implementação?
Eu, hoje, estou em Recife, mas a gente, no Rio Grande do Norte, teve dificuldade de implementar porque a gente estava vendo as pessoas realizarem simples- mente mutirões. E o mutirão é algo que me incomoda, porque parece coisa de caridade. Você realiza um mutirão num dia, como todo mundo no final do ano, no Natal, vai fazer uma caravana, etc. Todo mundo pecando. Aí, chega no final do ano e diz, pronto, meus pecados estão perdoados. Então, eu acho que não faz muito sentido. Por mais importante que seja você realizar um mutirão direcionado a essas pessoas, por exemplo, elas têm dificuldade de guardar seus documentos. No ano seguinte, elas terão a mesma dificuldade de guardar os documentos. Então, você não transforma a vida das pessoas. Foi então que, aqui em Recife, em 2022, um ano após a criação da política, os juízes ficaram com o encargo de pensarem em alguma coisa e chegaram à conclusão, num workshop que fizeram com instituições e com o próprio movimento das pessoas em situação de rua, que seria interessante a criação do Núcleo 4.0. Nosso tribunal tem jurisdição em seis estados. Ceará, Rio Grande do Norte, Paraná, Pernambuco, Alagoas e Sergipe.
“O movimento pela inovação é um olhar de ressignificação dos serviços judiciários para que eles sejam centrados no jurisdicionado. O princípio fundamental da inovação judiciária é o princípio da centralidade no jurisdicionado”
O que é esse Núcleo 4.0?
É uma vara digital, ela não tem existência física, exclusiva para receber pessoas em situação de rua, para receber ações de interesse de pessoas em situação de rua. E aí eu fiquei encantado com a ideia, porque aí era uma outra coisa: eu teria uma política permanente, eu realizaria os mutirões, mas eu teria uma política permanente. Eu me especializaria nas dificuldades delas, eu teria condições de maleabilizar algumas regras mais rígidas do sistema processual para poder efetivamente acolher melhor as pessoas em situação de rua e, sobretudo, se era um juízo digital, eu não ia exigir que essas pessoas viessem ao fórum, porque essas pessoas não se conectam bem com o fórum. Então, a gente tinha condições de realizar a audiência onde elas estivessem. A coisa me pareceu fazer sentido. Quando surgiu a ideia, surgiu a proposta de implementação do Núcleo 4.0 desse aqui em Recife e, automaticamente, a gente se ofereceu para ter um em Natal também. Então, foram criados os dois. E aí, desde então, desde o início de 2023, a gente vem conduzindo o Núcleo 4.0, tem um ano e meio. São só voluntários, tanto os juízes quanto os servidores que fazem parte do Núcleo 4.0. E a gente realmente criou uma normatização específica para a adaptação das regras processuais para as pessoas em situação de rua e criou um procedimento adequado para eles. Então, por exemplo, nas audiências, a gente não exige que as pessoas compareçam perante os juízes. Para ter uma ideia, por exemplo, da dificuldade. Eu demorei aqui um pouco a comparecer, porque eu estava con- versando com um assessor. Era o caso de uma pessoa em situação de rua., Eu estou convocado do Tribunal, estou desembargador aqui. Então, eu estou recebendo já recursos. Uma pessoa em situação de rua foi condenada por moeda falsa em Sergipe. Moeda falsa é você andar com dinheiro falsificado. É uma pessoa em situação de rua viciada em crack e, na verdade, é uma pessoa que está doente pelo vício de drogas. Ela foi condenada — acho que a dois, três anos de prisão — e subiu o recurso de apelação. Tem farta documentação no sentido de que ela está doente. Tanto que ela recebe um benefício do INSS porque está doente. Porém, ela foi condenada, não se fez andar o incidente de sanidade mental, sob o argumento de que ela foi intimada para comparecer ao exame com um médico, ela não compareceu. Ora, como é que uma pessoa que não estava com juízo vai saber que tinha que ir para... Entendeu? Então, nessa jurisdição especializada, a gente desenvolve uma certa sensibilidade em relação aos problemas enfrentados por elas. E aí, a gente, pelo menos uma vez por ano, promove realmente o mutirão gigante, que eu acho que foi o que impressionou.
Como foi o deste ano?
Esse ano, a gente promoveu agora, acho que no dia 19 de agosto, que é o Dia Nacional do Movimento Social das Pessoas em Situação de Rua. E aí, a gente fez ali no Presépio de Natal, perto do DED, daquele ginásio. Eu acho que a gente contou com 30 e poucas instituições, eu acho. Enfim, foi um negócio bem grande mesmo. Bem grande mesmo. Atendemos mais de 400 pessoas. Para você ter uma ideia, Natal e Pernambuco tem juntas em torno de 1.200 pessoas em situação de rua, segundo o censo do Governo do Estado. Então, se a gente atendeu 400 pessoas, a gente atendeu um terço delas. Um terço, obviamente. Então, foi realmente muito bacana. Esse ano, a gente fez em parceria com o TRT. E aí, depois, muito por conta dessa especialização, a gente descobriu um grupo ainda mais vulnerável, que são os migrantes em situação de rua. No ano passado, a gente fez. Esse ano, vai fazer outro. A gente está fazendo um mutirão de estados exclusivamente a migrantes e recebendo ações típicas de migrantes, que envolvem também sua regularização, inclusive como refugiados. Então, esse ano, por exemplo, nesse último mutirão, agora a gente conseguiu empregar um venezuelano no Nordestão, dentro do nosso projeto de empregabilidade, que chama Parceiros da Inclusão. A gente chama empresas para mostrar que existe preconceito em relação às pessoas em situação de rua. Existem pessoas fantásticas lá. Porque o problema das pessoas em situação de rua é o estigma. Normalmente, pensam que é justamente esse drogado de Aracaju. Na verdade, essa pessoa em situação de rua que foi empregada pelo Nordestão, veja, ainda vai ser um subemprego diante do nível educacional dessa pessoa. É um advogado da Venezuela que veio fugir do regime de Nicolás Maduro. Resultado: ele vai trabalhar como aquele pessoal que fica empacotando a feira, como embalador. Mas já está morto de felicidade porque ele estava morando na rua. E isso aí é uma ponte para, de repente, ele conseguir... Ainda fiquei com vontade — é porque ele foi embora — de arranjar um curso de Direito aqui para ver se ele consegue aproveitar o diploma e trabalhar como advogado. Mas, enfim, o fato é que tem pessoas fantásticas. No primeiro mutirão, por exemplo, abordou uma pessoa que tinha mestrado e estava em situação de rua. Aí são pessoas que se perdem. Hipervulneráveis. Pessoas trans, por exemplo, que brigam dentro de casa. Todo tipo de gente, extremamente preparada que está em uma situação de absurdo abandono. Então, é um tipo de jurisdição que precisa... Que é muito delicada. Que precisa de um nível de especialização. São vítimas de tráfico humano, que a gente tenta ter um olhar especial também.
Como funciona na prática? O que é que vocês fazem? Vocês tentam identificar o que é que ela está necessitando? E aí tentam ajudar? Ou você já tem um padrão?
No dia do mutirão, a pessoa chega ao mutirão e entra num processo de triagem com cinco campos. Ela vai ter direito desde um simples corte de cabelo a... Pode ser que ela não esteja enfrentando nenhum problema jurídico. Mas pode ser que ela tenha. Então, a gente faz uma auditoria jurídica da vida dela. E a gente vai direcionando para os serviços. Pode ser que seja simplesmente o direito dela de sair perfumada. Mas pode ser que tenha um problema jurídico profundo. Quando a gente criou o Núcleo 4.0, começou a fazer sentido porque a gente distribuiu o processo judicial para o próprio Núcleo 4.0. Então, por exemplo, você teve uma pessoa que entrou no primeiro mutirão, ela entrou sem nome e saiu aposentada. A gente conseguiu todos os serviços. Tanto que, como ela não tinha nome, ela não sabia o dia de nascimento dela. Mas você sabia mais ou menos pela idade. Enfim, a gente conseguiu reconstruir. Depois que foi aposentada, ela disse: 'nunca na minha vida eu celebrei um dia de aniversário'. A juíza mandou comprar um bolo e cantou os parabéns para ela.
“Aquilo que a gente enxerga só como uma coisa de inteligência artificial, decorre de algo muito mais profundo, que é uma tentativa de
se reconectar com a população e prestar um serviço
que lhe faça mais sentido”

E hoje vocês estão atuando em Natal e em Recife. Ou já estão atuando em outras cidades?
Em Recife eu não participo. Sim. Eu estou no Rio Grande do Norte. No Rio Grande do Norte, a gente fez os dois mutirões em Natal. Aí o TRT resolveu se engajar, porque gosta também. O TRT não tem o Núcleo 4.0 como a gente, mas gosta de se engajar nos mutirões. Então, ele nos ajudou no de Natal. Ano passado, nós fo- mos parceiros deles no de Caicó. E eles vão fazer agora em novembro em Mossoró. A gente vai ser, digamos assim, o ativante. Nós meio que lideramos em Natal e eles têm feito em outras cidades.
E vocês têm planos de ampliar isso para outras cidades? Fazer parcerias com prefeituras para levar isso a mais cidades?
A gente precisa meio que consolidar um pouco a nossa estratégia em Natal. Se a gente já fosse para o interior, eu acho que a gente estaria dando um passo maior que a perna. Porque a gente está descobrindo tanta coisa e às vezes está atendendo uma cidade do interior indiretamente. No final do ano passado, já no recesso forense, eu não tinha tempo de fazer uma audiência e eu precisava fazer essa audiência, eu deixei para fazer na véspera do Natal. Ou seja, eu já estava de folga, mas fui. Aí fui naquele hospital João Machado em Natal. Porque a pessoa estava internada. Era uma pessoa em situação de rua e estava internada. Aí fiz a audiência, a gente conseguiu conceder o benefício. Essa senhora, por exemplo, era uma senhora de cinquenta e poucos anos que era uma pessoa em situação de rua em Natal. Ela era de São Paulo. Como tinha um problema mental, ela saiu perambulando, ela se perdeu da família, saiu perambulando pelo país, foi estuprada no Piauí. E terminou vindo para Natal. Imagina uma senhora de mais de 50 anos sendo estuprada no meio da rua, as histórias mais terríveis. As assistentes sociais são tão dedicadas nesse hospital João Machado que acharam a filha da mulher em Ribeirão Preto, São Paulo, se eu não me engano. Aí eu peguei, fiz a audiência, concedi o benefício, falei com a filha, porque a filha estava esperando a primeira parcela dos benefícios para comprar uma passagem aérea. Ou seja, a gente reconectou... Sendo justo, mais a assistente social do que a gente. Mas a gente ajudou a reconectar a família. Aí, quando eu estava no hospi- tal, a assistente social disse: 'o senhor se incomoda em circular pela outra ala?' Porque eles dizem assim, que nunca vai uma autoridade no hospital. Bom, vamos lá. Quando eu chego na outra ala, tem um senhor de também acho que mais de 60 anos lá na outra ala, que estava há três meses nesse hospital. Era uma outra pessoa em situação de rua. E essa pessoa, segundo me disseram, ela já estava próximo de ser hostilizada. Pela própria equipe do hospital. Porque a pessoa já es- tava com alta médica, mas as assistentes sociais estavam resistindo à alta definitiva, que é o que eles chamam de alta social porque diz que ela era uma pessoa em situação de rua. E realmente, do ponto de vista médico, se fosse na sua casa, ela estava sobrevivendo. Lá, não. E ela estava com 32 quilos. Então, realmente, como é que você solta uma pessoa que tem 32 quilos? E o médico diz: " Eu não tenho mais o que fazer com ela". Ou seja, a pessoa termina sendo vítima de uma briga, de uma briga profissional dentro do hospital. E é terrível, porque aí você termina sendo hostilizado. Imagina, você já está frágil, com 32 quilos, e o povo brigando a seu respeito e soltando piada um por outro na sua frente, né? Eu sei que nesse dia, a gente ficou tão comovido. Eu levei o procurador a tiracolo, o procurador do INSS, para a audiência. Eu olhei pra ele e fiz: 'não quer conceder esse benefício pré-profissionalmente, não?' Aí ele disse 'eu quero'. Eu sei que a gente olhou pra ele e deu um benefício, porque era tão evidente que não precisava nem de uma perícia. As assistentes sociais se emocionaram e vieram nos contar que o Rio Grande do Norte não tem critérios para que uma pessoa em situação de rua tenha alta de um hospital. Então, assim, temas como esse, a gente precisa compreender melhor. Antes de eu ir pra Itaipu, eu preciso compreender melhor o contexto para que a gente possa se expandir.
“A gente precisa se apropriar do que há de positivo na nossa tradição e promover as devidas adaptações para que as pessoas também enxerguem na justiça a maior legitimidade no momento em que a gente desempenha o nosso trabalho”
Mas, pelo que o senhor fala, vocês trabalham com essa perspectiva, confere?
Sim. Tanto que a gente já vai a Mossoró e a Caicó. Mas, a princípio, a gente queria entender melhor o contexto dos dramas que são vivenciados por essas pessoas. Um ano e meio é um período de conexão, realmente. E, assim, a gente faz com muita dificuldade, porque a gente é voluntário. Eu, por exemplo, trabalho na Vara Fiscal, eu trabalho com tributos. E me aparece um caso deste, seja do imigrante, seja dos brasileiros, enfim, pra gente tentar resolver.
Eu queria abordar com o senhor, agora, a questão da governança judicial. Como é que foi desenvolvido esse projeto?
A Urbana deve, até hoje, uma fortuna em tributos federais. Por conta do inchaço do quadro de décadas atrás, que já era contribuição previdenciária e não consegue pagar a contribuição previdenciária. Ou pagava a folha ou a contribuição previdenciária. E Natal ia se tornar um município inviável. Porque o débito, por exemplo, chegou a, tipo assim, eu não sei quanto hoje é a receita de Natal, mas até um tempo atrás, a receita de Natal era em torno de R$ 2 bilhões por ano. O débito era já de R$ 500 milhões. Então, imagina, 25% da receita de Natal. Então, da minha parte, qual era — digamos assim — a minha missão? É cobrar o débito. Não cobrasse o débito, eu causaria uma desordem generalizada nos serviços públicos da cidade. Então foi daí que surgiu a ideia da governança judicial. Primeiro, a gente, enfim, deflagrou um projeto que terminou naufragando, que era uma tentativa de... Isso não é da governança. A ideia era que a gente conseguisse empreender dentro do lixão de Cidade Nova, aquele lixão antigo que Natal tinha, para explorar o que está ali enterrado. O lixo que está ali enterrado. E aí transformar em combustível, enfim, energia. Havia essa ideia, mas terminou faltando investimento. Faltou um investidor. Aí o município disse: "Olha, eu não sei mais o que fazer; só se eu fechar a Urbana". Bom, é com vocês, eu disse. Mas aí, pouco antes da pandemia, veio essa audiência e eles diziam: "Olha, a gente tem uma enorme dificuldade, inclusive, de reduzir os quadros. A gente tentou demitir alguns funcionários e a Justiça do Trabalho mandou voltar. Ou a gente tenta se programar para pagar aqui a contribuição previdenciária, vem um bloqueio da Justiça do Trabalho". Aí eu percebi que, assim, estavam querendo também botar a Justiça do Trabalho para Cristo, sabe? Tudo é culpa da Justiça do Trabalho. Não tem problema, a gente vai envolver a Justiça do Trabalho nesse negócio. Aí, durante a pandemia, realmente, eu esperei, porque essa audiência, que foi, digamos assim, o marco de criação da governança, ela aconteceu em fevereiro, no final de fevereiro de 2020. Você deve lembrar que a pandemia, menos de um mês depois, a gente estava em isolamento. Aí, eu esperei uns três meses, porque eu imaginei que o prefeito teria que se direcionar para lutar contra a pandemia. Quando a gente já tinha meio que estabilizado, já sabia o que estava acontecendo, eu marquei uma audiência online com o prefeito e o presidente do TRT.
E como foi?
O presidente do TRT e o próprio prefeito concordaram com aquilo que a gente chamou de governança judicial compartilhada. Um: todos concordaram que ne- nhuma decisão estratégica da Urbana seria tomada sem que a governança soubesse. Aí o processo terminou ganhando esse nome de governança. Dois: que a Justiça do Trabalho iria ajudar em todas as decisões em matéria trabalhista. Três: que a Justiça do Trabalho não faria nenhum bloqueio nas contas da Urba- na. O município entregaria R$ 500 mil reais do FPM para a Justiça Federal, que direcionaria para a Justiça do Trabalho. E a Justiça do Trabalho criou uma ordem de pagamentos a partir desse valor sem comprometer as contas do município. E aí, assim se começou a fazer. Depois, quando se começou a discutir a folha da Urbana, enfim, a necessidade de reajuste dos funcionários, etc. Aí a Justiça do Trabalho começou a liderar esse processo com a Justiça Federal como coadjuvante. O que a gente chama de governança. Porque não foi que a Justiça Federal atraiu tudo. Todas as competências estão sendo respeitadas. Apenas você estabeleceu uma governança com todos conversando. Depois, eu vi que eu tinha cometido uma loucura, porque havia ali a previsão de que nenhuma adesão estratégica seria tomada sem a participação da governança. Sendo que eu não entendo de lixo. Então, eu fui um pouco irresponsável da minha parte. Então, o que é que eu fiz? Eu fui ao presidente do Tribunal de Contas para que o Tribunal de Contas assumisse. O próprio Tribunal de Contas se conectou. E aí, recentemente, a gente viu a necessidade também de o Tribunal de Justiça entrar na governança.
Por que?
O Tribunal de Justiça designou um juiz porque parte do débito que a Urbana tem com a Justiça Federal, e de certo modo com a Justiça do Trabalho, decorre do fato de que o Estado não paga taxa de lixo, que seria direcionada para a Urbana. Então, veja que a Urbana deve uma fortuna, e o município é quem deve uma fortuna, porque todo esse crédito é assumido pelo município, muito porque o Estado não paga. Então, o que é que a gente conseguiu fazer? A gente conseguiu, junto à União, o desconto de R$ 250 milhões no débito do município. O município está pagando os parcelamentos, porém o município criou uma engenharia que foi aceita por conta da nossa capacidade também de interlocução com a Procuradoria da Fazenda Nacional, que é a Procuradoria da União: o município deposita o valor, mas o valor não é imediatamente direcionado para a União. Ele vai, ele fica ali quietinho, porque o município vai tentar economizar a parte desse valor com a venda de seus próprios precatórios. E aí entrega seus precatórios para a União. Então, a gente está estimando que se isso funcionar direitinho, que de R$ 500 milhões o município vai pagar só R$ 180 milhões. O que é excelente. Por outro lado, como a gente conseguiu colocar o Tribunal de Justiça, o Tribunal de Justiça conseguiu um acordo para que o Estado pague em oito anos o que deve ao município. De modo que aquilo que vai entrar do Estado para o município, já vai ser direcionado. Então, a gente conseguiu criar um ambiente para que o município possa pagar. Mais: a folha da Urbana foi enxuta porque havia 110 funcionários em situação irregular, porque já eram aposentados. Todos aí, nessa engenharia, a gente conseguiu direcionar dinheiro para que a Justiça pagasse todos. Então, todos saíram da empresa, a gente enxugou a folha e, por conta, justamente, do controle que a gente estabeleceu na última convenção coletiva, se estabeleceu que todos os super-salários foram cortados, se estabeleceu um teto e aí a gente conseguiu o aumento do que era necessário para o quadro da urbana, sem comprometer as finanças municipais. A governança é isso.
A governança pode ser aplicada em soluções para outras cidades que estão passando por problemas que são semelhantes?
Um modelo como esse é facilmente replicável para qualquer município. E não apenas para situações que envolvam dívidas. Ele pode ser replicado. Na verdade, isso tecnicamente, a gente vai chamar de tratamento estrutural. Então, tratamento estrutural, por exemplo, no caso de um lixão, que tem ali questões ambientais, etc. Sim, funciona. Agora, a teia de governança que você vai construir vai depender do específico problema que o município esteja suportando.
“A Justiça Federal do Rio Grande do Norte foi a segunda instituição judicial do país a ter um laboratório de inovação. E até eu que implementei, porque eu era o diretor”
O senhor é muito envolvido com inovação na justiça. Como é que o senhor vê essa utilização da inovação da justiça brasileira?
O grande desafio nesse tema é até mais teórico. A Justiça é essencialmente tradicional. Na verdade, quando se estuda a fundo a origem da Justiça, percebe-se que ela está ligada à nobreza medieval. A Justiça portuguesa, que influenciou a brasileira, foi inspirada na Justiça francesa. O que era a Justiça francesa? No início da Idade Média, no período merovíngio, assim como ocorreu na Inglaterra, era uma prerrogativa real, posteriormente delegada à nobreza. Eu me lembro, eu morei na França, quando tinha uma distinção que a gente dava na aula de História, na sétima série, sobre a nobreza de espada e a nobreza de vestido. A nobreza de espada eram os cavaleiros, a nobreza de vestido eram os funcionários, por isso que a gente usa toga. Então, na verdade, como você está diante de uma instituição que tem essa origem, é muito difícil você inovar. E se você não inova, você não agrega valor. Com o detalhe de que você tem um modelo tradicional que vai ter uma perspectiva europeia. E aí, talvez, por isso, a população brasileira veja a Justiça com aquela coisa distanciada, ou seja, dificuldade de se conectar. E, assim, isso não é culpa da justiça brasileira, é do mundo inteiro, porque o mundo inteiro a Justiça tem essa roupagem. O movimento pela inovação, quando surgiu, não se limitou à tecnologia. Não se trata apenas de dizer que uma ferramenta de inteligência artificial resolverá todos os problemas. É uma nova perspectiva de ressignificação dos serviços judiciários, para que sejam centrados no jurisdicionado. Eu tenho um texto em que eu digo que o princípio fundamental da inovação judiciária é o princípio da centralidade no jurisdicionado. Ou seja, por mais que, eventualmente, vá sacrificar direitos do jurisdicionado, eu devo tentar proporcionar ao jurisdicionado a melhor experiência possível. Isso pressupõe, claro, eficiência no meu trabalho, celeridade. Isso pressupõe uma melhor comunicação, por isso que a gente hoje tem um movimento, por exemplo, pela linguagem simples no judiciário, uso de elementos visuais. A 6a Vara Federal do Rio Grande do Norte foi a primeira do país a usar elementos visuais em seus documentos.
Na área da tecnologia, há um princípio que é o produto voltado para o usuário...
Segue a mesma lógica. O movimento pela inovação tecnológica ajudou nesse processo de ressignificação. Mas é importante perceber que isso é uma coisa maior. Você tem um pano de fundo axiológico que se aplica à tecnologia, mas também à atividade social como um todo. Então, por exemplo, e que pressupõe também um processo de humanização. Então, por exemplo, na verdade, quando a gente deu um Núcleo 4.0 voltado para as pessoas em situação de rua, dessa coisa de uma jurisdição personalizada, tentando compreender os problemas, é o princípio da centralidade no jurisdicionado. Aquilo que a gente enxerga só como uma coisa de inteligência artificial, decorre de algo muito mais profundo, que é uma tentativa de se reconectar com a população e prestar um serviço que lhe faça mais sentido, sem descaracterizar. Há um ponto também que eu sustento bastante: por mais que haja muita crítica, nenhuma instituição é tão procurada quanto a justiça. Então, assim, parte da nossa tradição é o que nos credencia a que a população nos procure tanto. Então, o que a gente precisa? A gente precisa se apropriar do que há de positivo na nossa tradição, mas promover as devidas adaptações para que as pessoas também enxerguem na justiça a maior legitimidade no momento em que a gente desempenha o nosso trabalho. Existe um movimento maior no mundo que já é mais antigo, vai ter ali alguns teóricos, enfim, que é o movimento pela inovação no setor público. Eu mesmo fiz um curso de aperfeiçoamento na Universidade de Harvard sobre inovação e liderança no setor público. E aí, a ideia, pelo menos na perspectiva da Universidade de Har- vard, do processo de inovação é a capacidade que o setor público tem de agregar valor, que ele vai chamar de valor público. Tem um professor chamado Michael Moore, já falecido, que foi o grande teórico disso, ele vai falar justamente da capacidade de agregação do valor público. E aí, o que a gente trouxe foi a ca- pacidade nessa instituição tão tradicional de agregar valor — sem se despir da tradição — mas a capacidade de agregar valor público, eu chamo, inclusive, de valor judicial ao nosso trabalho. E isso pressupõe uma reflexão sobre alguns dos nossos princípios. O fato é que a coisa meio que gira em torno disso. E um dos instrumentos para que você possa agregar valor no nosso trabalho é o investimento em tecnologia. Então, o movimento pela inovação busca refletir sobre como agregar valor nessa perspectiva humanística centrada no jurisdicionado. Esse Núcleo 4.0 das pessoas de rua, você vê que tem um aspecto tecnológico, é uma vara digital. Mas, ao mesmo tempo, mais humano é impossível porque vai ao hospital para poder fazer uma audiência. Ela pode ser considerada uma inovação social nesse contexto.
Quando surgiu esse movimento?
Esse movimento surgiu em 2017. Em 2017 começou pequeno na Justiça Federal, foi crescendo. A Justiça Federal do Rio Grande do Norte, por exemplo, foi a segunda instituição judicial do país a ter um laboratório de inovação. E até eu que implementei, porque eu era o diretor. Então, veja, em 2018 surgiu o terceiro. Em 2019 surgiu o quarto. Que foi aqui na Justiça Federal da Paraíba. Em 2020, as coisas começaram a acontecer. Em 2021 veio uma resolução do CNJ e disse que todo tribunal do país tem que ter um laboratório de inovação. E de 2020 para cá, repare a quantidade de coisas que surgiram. O Brasil hoje tem 100 ferramentas de inteligência artificial funcionando ou em desenvolvimento. Nenhum país do mundo tem tanto. Então, esse movimento pela linguagem simples. Rede de cooperação, que é um negócio novíssimo, que é, inclusive, o que dá fundamento à governança da Urbana. O Código Processo Civil, por exemplo, prevê o dever de cooperação desde 2015. A coisa só foi ficar mais densa em 2021. Tudo seguindo esse movimento pela inovação. Agora, por exemplo, o ministro Gilmar Mendes foi relator de um processo importantíssimo sobre a judicialização da saúde. Nesse caso, o ministro Gilmar desenvolveu a tese, sendo que o Brasil não está sabendo. Aquilo ali é um acordo de todos os entes federados e toda a sociedade civil. Aquilo ali, o julgamento reflete o que aconteceu. Não foi o ministro que decidiu aquilo, não. Você consegue ver o Supremo fazendo isso? É uma consequência desse movimento pela inovação. Está sendo muito criticado porque ficou complexo e ficou mesmo, mas é um acordo. É como eles acham que o sistema deve funcionar. Não foi o ministro que impôs.
“O Brasil hoje
tem 100 ferramentas de inteligência artificial funcionando ou em desenvolvimento. Nenhum país do mundo tem tanto”

“O grande ganho desse movimento pela inovação, eu costumo dizer que, por esse movimento, o juiz está deixando de ser uma autoridade pura para ser uma autoridade com a capacidade de exercer liderança”
O que é que a sociedade ganha com essa nova fase, esse uso de inovação na justiça?
A sociedade vai ganhar, primeiro, uma justiça mais eficiente e vai ganhar uma justiça mais humana, compreensiva com seus próprios problemas. E, sobretudo, vai ganhar uma prestação judicial mais legítima.
Por que?
A Justiça, como o Brasil, é diversa. A Justiça tem toda a credibilidade, mas o que incomodava a sociedade é que as coisas fossem impositivas a partir de uma visão que a sociedade não necessariamente tinha. O que acontece é que o Brasil é um país muito desigual. Eu frequento um fórum de formação de juízes, inclusive vou esse ano de novo, esse ano vai ser na Coreia do Sul, um fórum de formação de juízes que envolve as escolas de magistratura de todos os continentes. Eu já fui na cidade do Cabo, na África, já fui no Canadá, teve um aqui em Recife que eu participei. Então, o que a gente percebe é que nós, juízes do Brasil, nós temos um nível formativo, nós temos uma formação melhor do que a maioria. Mas nós temos um problema. Que é um problema do mundo inteiro.
Qual?
Nós somos a elite. Então, se nós formos a elite na Noruega, não faz a menor diferença, porque todos são elite. Então, é excelente você ter juízes com uma formação fantástica, mas às vezes, mesmo aquela decisão bem elaborada, pegar um juiz mais sério e preparado, não necessariamente a pessoa em situação de rua vai se conectar com a jurisdição por ele prestada e não vai ser maldade dele, ele está fazendo o melhor, com a melhor educação, que às vezes ele tira do bolso pra poder. Não é? Na Noruega não vai fazer tanta diferença. Mas num país desigual, faz. Se a gente tiver capacidade de interlocução com esses setores da sociedade, entendendo um pouco a vida delas, aí a prestação judicial vai estar muito mais qualificada. Eu acho que o grande ganho desse movimento pela inovação, eu costumo dizer que, por esse movimento, o juiz está deixando de ser uma autoridade pura para ser uma autoridade com a capacidade de exercer liderança. E é diferente. No caso de liderança, você conversa, você constrói as soluções. E aí, quando você constrói as soluções, elas são muito mais facilmente penetradas na sociedade.