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EDGAR MORIN E O MOTOQUEIRO

Edgar Morin, 103 anos completados em 8 de julho último, em seu “Para sair do Século XX”, – publicado no Brasil em 1987 – conta que, uma manhã em Paris, ia a pé para a Maison des Sciences de l’Homme, uma Fundação de Pesquisa criada pelo historiador Fernand Braudel. Em um cruzamento, ele viu um […]

Edgar Morin, 103 anos completados em 8 de julho último, em seu “Para sair do Século XX”, - publicado no Brasil em 1987 - conta que, uma manhã em Paris, ia a pé para a Maison des Sciences de l’Homme, uma Fundação de Pesquisa criada pelo historiador Fernand Braudel. Em um cruzamento, ele viu um carro pequeno avançar o sinal e atropelar um motociclista. O piloto da moto teve ferimentos leves e o dano do carro não foi grande.

Chegou perto e ouviu o motorista afirmar que o motoqueiro avançou o sinal vermelho e bateu na traseira do seu carro. As outras pessoas concordavam com o motorista.

Deixo agora com vocês o que disse Morin:

“No que diz respeito à cor do sinal, percebo que já não estou mais tão seguro, mas, no que se refere ao choque, vi muito bem o Citroën bater na moto. O homem do carro mostra-me seu paralama esquerdo ligeiramente amassado com o choque. Fora mesmo o outro que batera nele, o que não foi desmentido pelo ferido.”

“Podemos estar vivendo as vésperas de uma hecatombe de proporções inéditas. Maior do que qualquer queda de meteoro gigante, nova era glacial, pandemia devastadora ou guerra nuclear.”

E agora? Por que ele não viu o que realmente se passou? Mais do que isso, por que viu o contrário das outras pessoas?

A resposta está em um fenômeno que ele mesmo já havia chamado de “componente alucinatório da percepção”.

Com uma vida de luta contra ditaduras e ditadores, defendendo os mais vulneráveis e oprimidos, lutando na resistência francesa contra a ocupação nazista, estando sempre ao lado dos mais fracos, enfrentando os mais fortes, Morin não conseguiu ver o menor batendo no maior. Note bem, mesmo a cabeça de um dos maiores pensadores do século, não conseguiu acreditar em algo que contrariava, tão absurdamente, sua visão de mundo.

Este episódio o levou a propor uma espécie de lei psicossocial: “Uma convicção bem arraigada destrói a informação que a desmente. Ela provoca a explosão da informação para que a informação não a faça explodir.”

Este é o mecanismo que ativa o negacionismo científico e “valida” muitas mentiras, como, aliás, temos visto, como nunca, nos últimos tempos. Transforma-se crenças em verdades. Nega-se a emergência climática, nega-se que Nicolás Maduro é um ditador, (já que você falou no assunto, aonde danado Maduro é de esquerda?) acredita-se que as vacinas causam, - não evitam - doenças, que os dinossauros foram extintos porque não cabiam na Arca de Noé e por aí vai.

Está reconhecendo o comportamento de certas pessoas, algumas bem próximas a você? Pois é. Não deixe de examinar também seu comportamento. Todos nós, qualquer que seja o ponto em que estivermos no arco político ideológico, esquerda, direita, nos extremos ou no centro e qualquer que seja o grau de formação intelectual, e nível econômico, todos nós, somos suscetíveis ao “componente alucinatório da percepção”. Uns mais, outros menos.

Se você estiver em uma rua, procurando o número de uma casa, certamente vai achar ótimo se descobrir que está na rua errada. Que deve procurar o número na rua ao lado. Pode até ficar meio sem graça ao descobrir, mas certamente vai agradecer a quem lhe informar.

Agora, imagine aceitar que uma profunda convicção, que lhe acompanha há anos, às vezes por toda a vida, não é verdadeira. O desconforto, não raro o sofrimento, que essa descoberta lhe causa é tamanho, que você buscará, em qualquer lugar, de alguma maneira, uma forma de negar a evidência que nega sua convicção, para diminuir ou eliminar o verdadeiro trauma, que aquela nova informação lhe causa.

Leon Festinger, (1919 – 1989) em uma obra seminal de 1957, “Teoria da Dissonância Cognitiva”, livro publicado no Brasil em 1975, por Zahar Editores, tratou em grande amplitude e profundidade a questão. Ele mostra as razões do desconforto psicológico e de como as pessoas reagem diante da incoerência (dissonância) entre o novo conhecimento e o que vinham acreditando e praticando.

Elliot Aronson, (1932 -) que teve Festinger como orientador acadêmico, afirma em “O Animal Social” (1972, com nova edição revista e atualizada, 2024) que “na maior parte do tempo, usamos razão, fatos e análise crítica não para formar nossas opiniões, mas para confirmar aquilo em que já acreditamos, vemos ou sentimos."

Baseados na conclusão que preferimos chegar, nós escolhemos em quais evidências vamos acreditar.

Veja isto aqui. Em 1954, Dorothy Martin, uma americana que liderava um grupo chamado The Seekers, de Chicago, afirmou que recebeu comunicações do planeta "Clarion", informando que uma grande catástrofe destruiria a terra no dia 25 de dezembro daquele ano, mas, uma nave, mandada pelos “Guardiões” do planeta, viria resgatar os que estivessem com ela à meia noite daquele dia.

Entre os seguidores, alguns venderam suas casas, pediram demissão dos seus empregos, deixaram suas famílias, enfim, deram as costas a tudo que tinham e foram esperar o “resgate”.

Entre eles, estavam infiltrados o já citado Leon Festinger e dois assistentes, se passando por seguidores da Seita. São eles que contam o que se passou.

Chegou meia noite e nada aconteceu. Aí alguém mostrou que em outro relógio, faltavam dois minutos para meia noite. Dois minutos depois, nada. Assim ficaram até às 4hs da manhã, quando a Líder da Seita “copiou” outra mensagem telepática vinda do espaço sideral. (Isso lhe lembra alguma coisa? Uns telefones na cabeça enviando sinais para o alto? Pois é.)

Ela informava que, graças às orações do culto, o grupo de alienígenas que iria destruir o planeta decidiu não o fazer.

O assunto foi amplamente noticiado e todo o país acompanhou a grande roubada em que entraram os seguidores. Estes ficaram então desmoralizados? Mortos de vergonha pela imensa bobagem que fizeram? Arrasados emocionalmente? Nada disso. Nos dias seguintes, o número de seguidores aumentou consideravelmente.

Agora, se um fenômeno dessa natureza ocorreu 30 anos antes dos primeiros passos da internet e 50 anos antes das redes sociais, o que estamos vendo acontecer é apenas o começo de uma manipulação de massa com resultados ainda inimagináveis.

A Alemanha, há poucos dias, votou para escolher novo Parlamento. O partido AfD, cujo programa traz princípios e propostas explicitamente neonazistas, se colocou em segundo lugar. Aliás, Elon Musk fez uma “live” para a Alemanha, poucos dias antes das eleições, e disse para não terem vergonha do passado e votarem neles.

Há algumas semanas, Musk e Steve Bannon – estrategista de Trump, condenado por crime político e corrupção - o primeiro, em um discurso na posse de Trump, o segundo em um encontro da extrema direita nos Estados Unidos, de forma despudorada e cínica, fizeram a saudação nazista.

Na sequência, Trump chamou Zelensky de ditador e está em lua-de-mel com Vladimir Putin, aquele outro grande democrata.

Podemos estar vivendo as vésperas de uma hecatombe de proporções inéditas. Maior do que qualquer queda de meteoro gigante, nova era glacial, pandemia devastadora ou guerra nuclear.

Será que temos como escapar?
Há fortes razões para acreditar que sim, temos. Mestre Edgar Morin, com quem começamos esta conversa, nos traz o que ele chama de Virtudes do Perigo. Ele começa por nos lembrar o que disse o poeta e filósofo Friedrich Hölderlin, (1770-1843) “Lá onde cresce o perigo, cresce também aquilo que salva”. Ou seja, lá onde cresce a desesperança, cresce também a esperança. A chance suprema reside no risco supremo.

Ele nos anima recordando que, em alguns momentos da história, a liberdade foi salva graças ao surgimento do inesperado e o aparecimento do improvável. E segue demonstrando outros fundados motivos para termos esperança.

Escolhi uma das cinco razões que ele apresenta, para concluir nossa conversa.

É o que ele chama “As virtudes geradoras/criadoras inerentes à humanidade”.

Ele explica. Assim como, em todo organismo humano, existem células-tronco dotadas de aptidões polivalentes próprias às células embrionárias, mas inativas, assim existem em todo ser humano, bem como em toda a sociedade humana, virtudes regeneradoras ou geradoras adormecidas ou inibidas.

Ele mostra que, nas sociedades estabilizadas, enrijecidas, essas forças geradoras/criadoras manifestam-se, naqueles que ele chama de desviantes, que são os artistas, músicos, poetas, pintores, escritores, filósofos, descobridores, artesãos e inventores.

Aí está a razão dos regimes autoritários e os ditadores em geral, buscarem destruir a cultura e perseguirem artistas e cientistas.

Isto posto, mais do que termos esperança, precisamos ser sinais de esperança. Esperança ativa, operante.

Ilya Prigogine (1917-2023), Nobel de Química de 1977, nos aponta um caminho: “Cabe ao homem tal qual é hoje, com seus problemas, dores e alegrias, garantir que sobreviva no futuro.

A tarefa é encontrar a estreita via entre a globalização e a preservação do pluralismo cultural, entre a violência e a política, e entre a cultura da guerra e a da razão.”**

É ainda ele que nos traz a grande e animadora notícia, o futuro está em construção e dela podemos participar.