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OS MUNICÍPIOS EM AMBIENTE DE REFORMA TRIBUTÁRIA

A partir de 1° de janeiro de 2025, a maioria das cidades potiguares terá novos prefeitos. Eles chegam (ou retornam) ao comando do Executivo municipal em meio a um tempo de mudanças, como é o caso do novo tributo sobre bens e serviços, o IBS, que substituirá o ISS, nos municípios, e o ICMS, nos […]

A partir de 1° de janeiro de 2025, a maioria das cidades potiguares terá novos prefeitos. Eles chegam (ou retornam) ao comando do Executivo municipal em meio a um tempo de mudanças, como é o caso do novo tributo sobre bens e serviços, o IBS, que substituirá o ISS, nos municípios, e o ICMS, nos Estados.

E também passarão a conviver com o desafio de manter as contas em dia, reduzindo despesas e elevando receitas. Diante deste cenário, a advogada e professora Liana Queiroz, que é especialista e doutoranda em Direito Tributário, preparou uma série especial de artigos para orientar os prefeitos nesta área que exige tanta atenção.

A primeira parte deste conteúdo trata da Reforma Tributária, de suas mudanças, da importância de fazer com que a população perceba onde estão sendo empregados os recursos provenientes dos tributos; dos cuidados que os gestores devem ter na finalização de seus mandatos; e de uma relevante questão a respeito da base de cálculo do ISS na construção civil. O conteúdo é um verdadeiro guia para os prefeitos e para todos aqueles que querem entender e se atualizar a respeito das questões essenciais para a boa gestão e o desenvolvimento dos municípios.

REFORMA TRIBUTÁRIA: O QUE MUDA NA TRIBUTAÇÃO MUNICIPAL?

A Emenda Constitucional n. 132/23 implicou em uma profunda reforma no sistema tributário brasileiro, com mudanças sensíveis na repartição de competências tributárias entre os entes federativos, modificando substancialmente a interação entre esses entes – União, Estados e Municípios – dentro do referido sistema, bem como o modo de repartição das receitas.

Dentre as diversas e profundas mudanças, criaram-se novos tributos, novas competências tributárias e novos modelos de gestão, arrecadação e fiscalização; exemplo dessa transformação é a criação do “Imposto sobre Bens e Serviços”, o “IBS”, que incidirá sobre o consumo, ocupando o lugar do atual Imposto Sobre Serviços (ISS), de competência municipal, e do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS), de competência estadual.

“A reforma de que tratamos mantém a competência municipal sobre o IPTU e o ITBI, mas a extinção do ISS e a substituição da tributação municipal sobre o consumo pelo IBS pode implicar em menor autonomia federativa
dos municípios”

Em relação às modificações na tributação municipal, deve-se ter em conta que o ISS é uma das principais fontes de receita dos Municípios, de arrecadação própria; o IBS, imposto a incidir sobre o consumo em substituição gradual ao ISS, compreende a tributação não somente sobre serviços, como sobre todos os fatos econômicos relacionados ao consumo (substituindo também o ICMS) e terá uma nova dinâmica de gestão, por um Comitê Federal (o Comitê Gestor do IBS), e a arrecadação será centralizada e se submeterá a uma nova forma – ainda desconhecida, pendente de regulamentação – de distribuição dos valores arrecadados.

Se, por um lado, a unificação dos impostos sobre o consumo pode resultar em uniformidade e um pouco mais de racionalidade no sistema de tributação brasileiro, por outro é demasiada pertinente a advertência do professor Paulo de Barros Carvalho, para quem “[...] a questão da alocação de receitas entre os entes federativos precisará de regulamentação clara e precisa para que o equilíbrio federativo seja mantido(Curso de Direito Tributário, 29a. ed., São Paulo: Saraiva, 2021, p. 438-444).

Evidente que a regulamentação legal das modificações ao sistema tributário implicadas com a Emenda Constitucional n. 132/23 deve ser acompanhada e debatida pelos municípios, através dos seus representantes, sobretudo no Legislativo e no Executivo, e pela sociedade civil, que sofrerá todos os impactos dessa tributação: econômicos, financeiros e relacionados à fruição dos serviços públicos e à manutenção do aparato estatal.

Nesse particular, importa lembrar que a Constituição Republicana de 1988 garantiu aos municípios a competência de instituir o Imposto Sobre Serviços (ISS), o Imposto Predial e Territorial Urbano (IPTU) e o Imposto sobre Transmissão de Bens Imóveis (ITBI). A reforma de que tratamos mantém a competência municipal sobre o IPTU e o ITBI, mas a extinção do ISS e a substituição da tributação municipal sobre o consumo pelo IBS pode implicar em menor autonomia federativa dos municípios.

De fato, a descentralização fiscal prevista na Constituição brasileira é não só um modelo de repartição das receitas tributárias e de gestão de competências, mas sobretudo um modo de assegurar a autogestão, a autonomia dos entes federativos. A transferência, para o Comitê Gestor do IBS – composto por representantes da União, dos Estados e dos Municípios – da competência para regulamentar e fiscalizar a arrecadação do novo imposto (IBS) naturalmente impactará nessa autonomia, presente no atual federalismo fiscal. É dizer: a centralização havida na concepção da tributação do IBS pode implicar a redução da independência financeira dos municípios.

Em favor da preservação de sua autonomia, os municípios devem posicionar-se para que tenham voz ativa nas decisões relativas ao novo imposto no ambiente do Comitê Gestor. O grande desafio será garantir que a distribuição das receitas do IBS reflita, de forma equânime, as necessidades fiscais de cada município, com critérios bem estabelecidos na regulamentação infraconsti- tucional que está em tramitação no Congresso Nacional.

O ex-Ministro do Supremo Tribunal Federal, Aliomar Baleeiro, em sua clássica obra “Direito Tributário Brasileiro”, já alertava para a importância de uma legislação infraconstitucional clara e eficiente para evitar os conflitos entre a União, os estados e os municípios, e para preservar a própria sobrevivência do Estado brasileiro enquanto Federação.

Nesse momento de inovações no sistema jurídico tributário, o trabalho legislativo deve fugir das pautas de urgência, apressadas, e demorar-se em debates, em ouvir os juristas, as classes produtivas, a sociedade civil; deve considerar todos os pontos de vista; esmerar-se em produzir textos normativos claros e redutores das complexidades atuais da tributação, notadamente quando inaugura uma nova ordem federativa fiscal.

Ainda, a regulamentação deverá contemplar mecanismos de transição para que os municípios possam se adaptar à nova realidade tributária, sem sofrer perdas bruscas de arrecadação, a exemplo da criação de um “fundo de compensação temporário”, capaz de amparar os municípios que mais dependem do ISS durante o período de implementação do IBS.

Outro ponto que vale destacar é que municípios menores ou com baixa atividade econômica podem sofrer com a redistribuição da arrecadação, já que, no novo modelo, os valores arrecadados passam a ser direcionados para o local de consumo (princípio do destino), prestigiando municípios com grandes populações e com maior demanda por serviços.

A regulamentação precisará ser sensível às diferenças regionais e aos perfis econômicos dos municípios, a fim de evitar que as disparidades regionais se agravem. Apesar da centralização prevista pela criação do Comitê Gestor do IBS, os municípios devem manter sua capacidade de promover políticas fiscais independentes e de atender às demandas locais de forma ágil e eficiente dentro desse cenário de novidades.

FINAL DE MANDATO: DIVULGANDO OS RESULTADOS DA BOA GESTÃO FISCAL

O equilíbrio fiscal é um dos principais objetivos de uma gestão pública responsável e eficiente. Para garantir esse equilíbrio, o gestor municipal deve adotar, ao longo de seu mandato, medidas que envolvam o aumento da eficiência na arrecadação e a contenção de despesas.

De fato, o controle rigoroso dos gastos, sobretudo com pessoal, mantendo-os dentro dos limites estabelecidos pela Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), é uma das principais medidas para garantir o equilíbrio fiscal. Isso inclui a contenção de aumentos salariais acima da inflação, a revisão de benefícios e a otimização da estrutura de pessoal.

A renegociação de contratos com fornecedores, a revisão de licitações e a realização de compras coletivas também podem ser medidas adotadas, capazes de gerar economia e melhorar a eficiência na aplicação dos recursos públicos. Igualmente, pode ser relevante a redução de gastos com custeio (aluguéis, energia elétrica, contratos de terceirização, etc.) e de despesas com contratos de serviços diversos – que não impactem diretamente naqueles que são essenciais à população.

Os recursos devem ser priorizados na execução das despesas com saúde, educação, segurança e infraestrutura, alinhadas às necessidades da população e aos recursos disponíveis.

“A renegociação de contratos com fornecedores, a revisão de licitações e a realização de compras coletivas também podem ser medidas adotadas, capazes de gerar economia e melhorar a eficiência na aplicação dos recursos públicos”

A eficiência e resultados da gestão não decorrem, contudo, somente da melhor alocação dos recursos e da contenção dos gastos. É necessário dar mais atenção ao aumento da eficiência da arrecadação.

Implementar programas de parcelamento de dívidas tributárias, como o REFIS, pode ajudar a recuperar créditos tributários e reduzir a inadimplência, gerando receita sem a necessidade de aumento da carga tributária. Do mesmo modo, revisar e atualizar o cadastro imobiliário pode assegurar a adequada tributação do Imposto Predial e Territorial Urbano (IPTU) e do Imposto sobre Transmissão de Bens Imóveis (ITBI).

Especificamente quanto ao IPTU e ao ITBI, são impostos que não sofreram alterações na competência municipal pela reforma tributária, o que reforça a necessidade de os gestores conferirem especial atenção para o incremento de arrecadação desses tributos, fomentando a sua arrecadação própria, local, em favor da preservação de sua autonomia financeira e de gestão.

Programas de incentivo à regularização, de concessão de prêmios (como o “IPTU premiado”) e de descontos para quitação antecipada dos tributos, bem como campanhas de educação fiscal, são boas práticas de gestão que podem trazer ganhos à arrecadação.

Investir na fiscalização, na modernização dos sistemas de cobrança, na capacitação do corpo técnico de auditores e de todo o pessoal vinculado à Secretaria de Tributação, aprimorar a gestão de processos administrativos relacionados ao lançamento fiscal e à gestão do passivo fiscal e da dívida ativa, pode combater a sonegação fiscal e ampliar a base de contribuintes e, por conseguinte, aumentar as receitas municipais.

O gestor deve estar atento ainda às possibilidades de concessão de incentivos fiscais, como a redução de alíquotas de ISS para determinadas atividades econômicas ou para as pequenas empresas, bem como a possibilidade de concessão de benefícios temporários para atrair novos investimentos. O desenvolvimento econômico local aumenta a arrecadação e reduz a dependência de repasses estadual e da União.

Por fim, o prefeito deve ter um acompanhamento dos valores das transferências constitucionais, notadamente por meio do Fundo de Partici- pação dos Municípios (FPM) e do cumprimento dos repasses de ICMS pelo Estado, inclusive no que se refere à formação do índice de Valor Adicionado Fiscal (iVAF) anualmente divulgado e que determina a parcela de distribuição do ICMS devido a cada Município.

E AÍ, COMEU?

A tributação é um dos pilares fundamentais do Estado e da sociedade organizada; é a arrecadação dos tributos que financia os serviços essenciais como saúde, educação, segurança, infraestrutura, além de propiciar a promoção das políticas públicas voltadas para o bem-estar social. No entanto, para que a tributação cumpra seu papel de forma legítima e eficaz, é imprescindível que ela seja percebida pela população não como uma forma de agressão patrimonial ou confisco, mas como um instrumento de justiça fiscal.

Embora pouco sobre isso se fale, os tributos têm, em sua essência, um caráter redistributivo: devem servir para reduzir desigualdades sociais, promovendo um ambiente de maior equidade e justiça; aqueles que possuem maior capacidade contributiva devem pagar mais ao Estado, enquanto os que têm menos recursos serão adequadamente protegidos.

A tributação justa respeita a capacidade contributiva do sujeito e a proporcionalidade, sem excessos que configurem abuso. Deve garantir a organização social, sem representar uma violação do direito de propriedade ou da liberdade individual.

Cada indivíduo deve contribuir de acordo com sua possibilidade, sem que isso gere um impacto negativo desproporcional em seu patrimônio ou em sua qualidade de vida. Quando a tributação ultrapassa esses limites, não deve ser tolerada pelo sistema constitucional brasileiro – será inconstitucional, porquanto confiscatória.

Ainda, não basta ser justa; também deve parecer justa! E para que a tributação seja percebida como justa, é essencial que haja clareza nos critérios de arrecadação, aplicação dos recursos e uma equidade nas políticas fiscais.

A sensação de desproporção ou de injustiça na tributação implica a percepção da exação tributária como violência econômica. Esse sentimento gera uma desconfiança crescente no poder público e estimula a sonegação fiscal, enfraquecendo a confiança entre o Estado e os sujeitos passivos da obrigação fiscal (nós, os contribuintes!). Quando os contribuintes percebem que os tributos são bem aplicados e que o Estado administra esses recursos de forma eficiente e transparente, há uma maior disposição em cumprir com suas obrigações fiscais.

“A transparência fiscal é um dos pilares da confiança entre o Estado e a população. Os cidadãos precisam saber como os tributos que pagam estão sendo utilizados e quais os benefícios diretos e indiretos que recebem em troca”

A transparência fiscal é um dos pilares da confiança entre o Estado e a população. Os cidadãos precisam saber como os tributos que pagam estão sendo utilizados e quais os benefícios diretos e indiretos que recebem em troca. A placa que, fixada numa via em pavimentação no Município informa que “o seu IPTU está aqui”, comunica muito além do que literalmente se lê: comunica transparência na alocação do recurso público, probidade da gestão e reversão do imposto arrecadado do munícipe em favor da melhoria, para todos, do local onde se vive.

Quando há clareza na destinação dos recursos, a população passa a perceber a tributação como um investimento coletivo no bem-estar social, em vez de uma agressão ao seu patrimônio. O uso eficiente e responsável do dinheiro público reforça a sensação de justiça fiscal e legitima o sistema tributário.

O ISS NA CONTRUÇÃO CIVIL: É POSSÍVEL A DEDUÇÃO DOS MATERIAIS EMPREGADOS NA OBRA DA BASE DE CÁLCULO DO IMPOSTO?

A base de cálculo do Imposto sobre Serviços (ISS) na construção civil deve incluir o valor dos materiais fornecidos pelo prestador dos serviços, exceto aqueles que estejam expressamente excluídos pela legislação municipal ou federal.

Com efeito, os materiais que o prestador adquire ou fabrica e usa na obra não podem ser deduzidos da base de cálculo do ISS. O valor total cobrado pelo prestador – que inclui tanto o serviço de construção quanto os materiais fornecidos – é tributado pelo ISS, salvo exceções expressas na lei.

A Súmula 423 do Superior Tribunal de Justiça (STJ) estabelece que “o fornecimento de mercadorias produzidas pelo prestador fora do local da prestação do serviço integra a base de cálculo do ISS”. Já o artigo 7o, § 2o, da Lei Complementar n. 116/2003 – que dispõe em âmbito federal sobre o ISS – prevê a dedução dos materiais fornecidos pelo prestador nas atividades de construção civil somente quando os materiais forem "produzidos fora do local da prestação de serviço", mas apenas nas condições previstas pela legislação municipal.

A respeito do assunto, em abril/23, o STJ, no julgamento do REsp 1.916.376/RS, reafirmou sua posição de que não é possível deduzir os materiais empregados na obra da base de cálculo do ISS, exceto quando esses materiais forem produzidos pelo próprio prestador fora do local da obra e submetidos ao ICMS (Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços).

“A base de cálculo do ISS na construção civil deve incluir o valor total dos serviços e materiais, salvo exceções expressas em lei e devidamente comprovadas pelo prestador”

Esse julgamento reafirma a jurisprudência consolidada da Corte Especial, segundo a qual a base de cálculo do ISS inclui o valor dos serviços prestados juntamente com os materiais utilizados, salvo exceções previstas na lei. A decisão seguiu a linha de que, para que a dedução ocorra, o prestador deve comprovar que os materiais foram fabricados fora do local da prestação do serviço e que foram comercializados separadamente, sujeitando-se ao ICMS – sem essa comprovação, não é permitida a dedução dos materiais da base de cálculo do ISS.

Esse entendimento segue a linha de decisões anteriores, inclusive a do Tema 247 do Supremo Tribunal Federal (STF), que validou a aplicação do art. 9°, § 2°, do Decreto-Lei no 406/1968. Portanto, a regra é: a base de cálculo do ISS na construção civil deve incluir o valor total dos serviços e materiais, salvo exceções expressas em lei e devidamente comprovadas pelo prestador.